Hora de examinar, tempo de (re)pensar!

A propósito dos exames nacionais do ensino básico e secundário – mais uma vez a decorrer, com todos os seus sagrados rituais, meticulosamente preparados e executados, na vertigem da justa, porque supostamente rigorosa, avaliação (num simulacro de visão judiciosa sem turva!) – recorda-se aqui um excerto de Surveiller et Punir, de Michel Foucault, obra de 1975, em que, a partir de uma análise histórica dos sistemas prisionais, o então já conceituado filósofo francês produz, genealogicamente, uma profunda análise sociológica e contundente reflexão filosófica sobre as relações de poder que sistematizam as relações sociais e sobre como, designadamente, a escola exerce esse poder sobre o saber e os seus aprendentes, através, sobretudo, do clássico e irrefletidamente intocável exame nacional:

«O exame combina as técnicas da hierarquia que vigia e as da sanção que normaliza. É um olhar normalizador, uma vigilância que permite qualificar, classificar e punir. Estabelece sobre os indivíduos uma visibilidade através da qual são diferenciados e sancionados. É por isso que, em todos os dispositivos de disciplina, o exame é altamente ritualizado. A ele juntam-se a cerimónia do poder e a forma da experiência, a manifestação da força e do estabelecimento da verdade. No centro dos processos de disciplina, manifesta a sujeição daqueles que são vistos como objetos e a objetivação dos que são submetidos. No exame, a sobreposição das relações de poder e das relações de saber assume todo o seu brilho visível. É outra inovação da época clássica que os historiadores das ciências deixaram na sombra. (…) Fala-se muitas vezes da ideologia que acompanha as “ciências” humanas, de forma discreta ou manifesta. Mas a sua própria tecnologia, esse pequeno esquema operatório tão difundido (da psiquiatria à pedagogia, do diagnóstico das doenças à contratação da mão-de-obra), esse processo tão familiar do exame, não implementa, no interior de um único mecanismo, relações de poder, que permitem obter e constituir saber? O investimento político não se faz apenas ao nível da consciência, das representações e daquilo que pensamos saber, mas ao nível daquilo que possibilita um saber.

Uma das condições essenciais para o desbloqueamento epistemológico da medicina em finais do séc. XVIII foi a organização do hospital como aparelho de examinar.
(…)
Do mesmo modo, a escola torna-se uma espécie de aparelho de exame ininterrupto que duplica toda a operação de ensino. As justas [torneios medievais] nas quais os alunos confrontavam forças dão cada vez mais lugar a uma comparação perpétua de cada um com todos, que permite avaliar e sancionar. Os Frades das Escolas Cristãs queriam que os seus alunos fossem examinados todos os dias da semana: o primeiro para a ortografia, o segundo para a aritmética, o terceiro para o catecismo de manhã e a escrita à tarde, etc. Além disso, devia haver uma prova todos os meses, com o objetivo de designar os que mereciam ser submetidos aso exame do inspetor. (...)»

Foucault, M. (2013). Vigiar e Punir. Nascimento da prisão. Lisboa: Ed. 70, pp. 213-215.

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