“Tanta criança a morrer de fome e esses indivíduos preocupados com os animais!”
Até que ponto devemos ter em consideração os interesses dos
animais não-humanos quando temos uma preocupação moral na nossa ação? Deveremos
ter algum cuidado especial com os animais, quando se trata de usá-los na experimentação
científica, quando os usamos para entretenimento em circos e os mantemos em
condições inapropriadas, quando os caçamos apenas por “desporto”, quando os
esfolamos vivos para confecionar dispendiosos casacos de peles escorrentes de
crueldade sanguinária ou mesmo quando simplesmente os matamos para os comer?
Trata-se do problema ético de saber se os animais não-humanos terão ou não
estatuto moral.
Em Animal Liberation
(1.ª ed., 1975) – a bíblia do movimento de libertação animal / direitos dos
animais –, o filósofo australiano Peter Singer, professor de Ética nas
Universidades de Princeton e Melbourne, retoma e revitaliza a tese
utilitarista, que vem de Jeremy Bentham (1748-1832), segundo a qual devemos
incluir o bem-estar dos animais não humanos no cálculo das consequências das
nossas ações, na medida que aqueles são seres sencientes (capazes de sentir prazer e
dor), de modo análogo aos seres humanos. A capa em epígrafe é da edição
revista, que em 2015 foi enriquecida com uma excelente introdução de Yuval Noah Harari, historiador na Universidade Hebraica de Jerusalém e autor do
imperdível Sapiens – História Breve da
Humanidade (4.ª ed., 2017).
O argumento utilitarista é o seguinte: uma ação é moralmente
correta se der origem ao maior bem-estar (maior prazer e menos dor) para o
maior número; ora, os animais não-humanos sentem prazer e dor; logo, devemos
incluir o bem-estar dos animais não-humanos no cálculo das nossas ações.
Os filósofos que argumentam que devemos ter em consideração
os interesses dos animais não-humanos na nossa ação não defendem, pois,
qualquer tipo de prioridade destes face aos seres humanos, como muitas vezes os
mais incautos “críticos” querem fazer crer – “tanta criança a morrer de fome e
esses indivíduos preocupados com os animais!”. Na realidade, trata-se de um mal
entendimento, fruto, simultaneamente, da ligeireza de opinião e do afastamento
de muitas pessoas face ao pensamento racional e estudo e leitura daquilo que
objetivamente foi pensado. O que é defendido – quer se concorde ou não – é que
nem tudo é permitido só porque não são humanos, perspetiva estoutra que os
filósofos utilitaristas apelidam, criticamente, de especismo. Analogamente ao
racismo, o especismo é a atitude segundo a qual os animais humanos seriam os
únicos a ter estatuto moral; todos os outros seres da Natureza não o teriam só
por não pertencerem à espécie humana. Pelo contrário, o que é proposto pelos defensores
do estatuto moral dos animais não-humanos é a ideia de que o mal feito aos
animais exige uma justificação, ou seja, deve ser tido na devida conta.
Não há nada na ideia ética de considerar o interesse dos
animais na ação humana, que implique deixar de ajudar seres humanos que
necessitam do nosso eficaz altruísmo. Uma coisa não invalida a outra! Pelo
contrário: as razões que nos obrigam a considerar os direitos dos animais não-humanos
são, nesta perspetiva, as mesmas que nos obrigam a ajudar seres humanos que
necessitem; qualquer cuidado ético perante animais humanos ou não-humanos é
simplesmente proporcional ao tipo (intensidade, qualidade…) de prazer e dor
envolvidos. E ajudar seres humanos que necessitem da nossa ajuda não implica,
em nada, deixar de ter a atitude ética adequada diante dos animais não-humanos.
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