O (mito do) amor, no banquete da vida reflexiva!
«Para ser franco, Erixímaco – comentou Aristófanes –, tenho em
vista falar num estilo bem diverso do teu e do de Pausânias. Efetivamente,
dá-me ideia de que as pessoas não pressentem, nem de longe, qual seja o poder
do Amor! Porque, se fosse esse o caso, não deixariam de lhe consagrar os
templos e os altares mais sumptuosos e de lhe oferecer os sacrifícios de maior
valia… (…) Vou, pois tentar iniciar-vos no mistério do seu poder e vocês serão
os mestres que hão-de, por seu turno, transmiti-lo a outros…
Antes de mais importa que fiquem a conhecer a natureza humana e as
suas vicissitudes. Pois a nossa antiga natureza não era tal como hoje e sim
diversa. Para começar, os seres humanos encontravam-se repartidos em três
géneros e não apenas em dois – macho e fêmea – como agora: além destes, havia
um terceiro que partilhava das características de ambos, género hoje
desaparecido, mas de que lhe conservamos ainda o nome. Era ele o andrógino, que
constituía então um género distinto, embora reunisse, tanto na forma como no
nome, as características do macho e da fêmea; hoje, contudo, não passa de um
nome lançado ao descrédito...
Em segundo lugar, a forma de cada ser humano era inteira e
globular, com as costas e os flancos arredondados, Tinham quatro mãos e igual
número de pernas; sobre o pescoço redondo, duas faces iguaizinhas uma a outra; uma
única cabeça onde assentavam as faces, colocadas em sentido oposto; quatro
orelhas; órgãos genitais em número de dois; e tudo o mais que a partir daqui
possa imaginar-se. (…)
Quanto à origem destes três géneros, com tais características,
ei-la: o macho foi inicialmente um rebento do Sol, a fêmea, da Terra; e da Lua,
a espécie que reunia as características dos outros dois, dado que também a Lua
partilha da natureza do Sol e da Terra. Daí o facto de serem globulares (…) –
devido à semelhança com os seus progenitores.
Ora, estes eram dotados de uma terrível força e resistência e, além
disso, de uma imensa ambição, pelo que começaram a conspirar contra os deuses.
O que Homero conta de Oto e Efialto se conta também a respeito deles, isto é,
que tentaram escalar o céu na intenção de atacar os deuses.
Então Zeus e as demais divindades puseram-se a deliberar o que haviam
de fazer deles e viam-se em sérios apuros: suprimir a raça e fulminá-los com o
raio, como tinham feito aos Gigantes, nem pensar (isso era suprimir também as
homenagens e os sacrifícios que lhes advinham dos humanos…); mas tolerar por
mais tempo a sua insolência – também não! Depois de muito matutar, Zeus, por
fim, lá se decide: “Parece-me”, anunciou, “que arranjei processo de continuar a
haver homens e acabar de vez com a sua arrogância: é enfraquecê-los. Agora
mesmo vou dividi-los ao meio um por um; deste modo não só hão-de ficar mais
fracos como também sairemos beneficiados graças ao aumento de número. Por
enquanto, podem caminhar eretos sobre as suas duas pernas; porem, se virmos que
mesmo assim persistem na arrogância e se recusam a dar-nos tréguas, então”,
declarou, “volto a dividi-los ao meio e passam a andar a andar só sobre uma
perna, ao pé-coxinho!”
Dito e feito. Pôs-se a cortar os homens às metades, exatamente como
se cortam sorvas para as por em conserva (…). À medida que os ia cortando,
encarregava Apolo de lhes virar o rosto e a metade do pescoço para a superfície
amputada, na ideia de que os homens se tornariam mais humildes com o espetáculo
da sua própria amputação diante dos olhos. E ordenou ainda que os sarasse das
restantes feridas. Apolo tratava, pois, de lhes revirar o rosto, e repuxando a pele
de todos os lados para a parte agora designada por ventre, apertava-a com toda a força, à maneira de bolsas providas
de cordões, em volta de uma única abertura que deixou mesmo no meio do ventre –
justamente o que chamamos hoje umbigo.
Alisou-lhes ainda numerosas rugas que ficaram e modelou-lhes o peito com um instrumento
do género do quer usam os cordo para as rugas do coiro em volta da forma.
Todavia, deixou-lhes umas tantas, mesmo na região do ventre e do umbigo, como
lembrança do seu antigo estado.
Ora, quando a forma natural se encontrou dividida em duas, cada
metade, com saudade da sua própria metade, se lhe reunia; e estendendo as mãos em
volta, enlaçadas uma na outra, não mais aspiravam a fundir-se num só ser!
Começaram, assim, a sucumbir à fome e à inação geral, porque se recusavam a fazer
fosse o que fosse uma sem a outra; e sempre que uma das metades morria, a que ficava
procurava ao acaso outra sobrevivente a que juntar-se, fosse a metade de um ser
completamente feminino (o que agora chamamos uma mulher) fosse a de um ser
masculino. Deste modo, a raça ia desaparecendo…
Compadecendo-se, por fim, Zeus lança mão de outro artifício e
muda-lhes ara diante os órgãos genitais – até aí, efetivamente, era na parte
exterior que se encontravam, processando-se as funções de gerar e dar à luz,
não de uns para outros, mas por intermédio da terra, à semelhança do que
acontece com as cigarras. Ao mudar-lhes, pois, os órgãos genitais para diante,
Zeus determinou que a geração humana passasse também a efetuar-se de uns para
outros, mediante tais órgãos – na fêmea, por intermédio do macho. E eis o que
tinha em vista: se acaso o acoplamento se desse entre homem e mulher, o resultado
seria procriarem e perpetuarem a espécie; se entre dois varões, haveria pelo
menos a plenitude da união e, uma vez apaziguado o desejo, poderiam voltar às
suas tarefas e interessar-se por outros aspetos da vida. Dessa época longínqua
data, sem dúvida alguma, a implantação do amor entre os homens – o amor que
restabelece o nosso estado original e procura fazer de dois um só, curando
assim a natureza humana.
Cada um de nós não passa, pois, de uma téssera humana, divididos,
como estamos, em metades, à semelhança dos linguados; e à sua própria metade,
ou téssera, que cada um infatigavelmente procura. Em consequência, todos os
homens que resultam do corte de um ser misto (o mesmo que em tempos era chamado
andrógino) só gostam de mulheres. É deste género que descende a maior parte dos
adúlteros, bem como todas as mulheres que gostam de homens – sem esquecer as
adúlteras! Por outro lado, todas as mulheres que resultam de um corte de um ser
feminino não ligam praticamente aos homens e voltam-se de preferência para as
mulheres: e estão as “comadrinhas” a ilustrar a descendência do género... Finalmente,
todos os que resultam do corte de um ser masculino só andam atrás de homens, e
mesmo de pequenos, como pequenas postas que são de um ser viril, revelam o seu
fraco por homens e comprazem-se em estarem deitados a seu lado, abraçados a
eles…
E eis justamente os adolescentes e os rapazes de maior valor, os que
possuem, cem por cento, uma natureza viril! Há quem diga que não, que não
passam de uns desavergonhados, mas é má-língua: se fazem o que fazem, não é por
falta de vergonha mas porque a sua ousadia, a sua coragem e virilidade os
impele a afeiçoarem-se ao que lhes é semelhante. E eis uma boa prova: ao
atingirem a maturidade, só os indivíduos desta têmpera se revelam homens para a
política… Entretanto, uma vez chegados à idade viril, dedicam-se a amar os jovens
e, com respeito a casamentos e a filhos, o interesse que manifestam deve-se
apenas a uma imposição da norma e não a uma tendência natural, porque, por si,
facilmente se remediariam solteiros, vivendo na companhia uns dos outros. Em
suma, um indivíduo desta espécie vem a dar um amante ou um amigo de homens,
afeiçoado, como é sempre, ao que tem a mesma origem que ele.
Ora bem, sempre que um amante (amante em sentido lato e não apenas
um amante de jovens!) encontra essa mesma metade que lhe pertence, eis que de
súbito os assalta uma estranha impressão de amizade, de parentesco, de amor,
enfim; e a tal ponto que já não aceitam, por assim dizer, separarem-se um instante
que seja! Esses são justamente aqueles que permanecem juntos durante toda a sua
vida – muito embora não soubessem sequer dizer-vos o que esperam, em concreto,
um do outro... Não passa decerto pela cabeça de ninguém que seja meramente a
união dos sentidos a causa do seu afã e do prazer que sentem em estar juntos;
visivelmente, é a alma de cada um que aspira a algo mais, algo que ela não sabe
exprimir mas que adivinha e deixa discretamente insinuar-se…
Imaginemos, por exemplo, que Hefesto chegava junto deles com os seus
utensílios e, ao vê-los deitados no mesmo leito, perguntava: “Que é que vocês,
criaturas, pretendem um do outro?” E o embaraço deles, voltava a perguntar: “Não
será a isto que vocês aspiram – a identificarem-se o mais possível um ao outro,
de forma a não mais se separarem noite e dia? Se é essa a vossa aspiração estou
disposto a fundir-vos a e a soldar-vos numa só peça, de tal modo que em vez de
dois, passem a ser um só. E assim vos será dado terem uma única vida enquanto
viverem, como se fossem uma só pessoa; e como uma só pessoa, hão-de continuar
lá no Hades, depois de morrerem, levados por uma única morte! Mas vejam lá se é
a isto que vocês aspiram e se este destino vos apraz...” Perante uma tal
promessa, estamos certos que não haveria uma pessoa sequer capaz de a recusar
ou de exprimir outro desejo! Bem pelo contrário, toda a gente ficaria convicta
de ter escutado, nem mais nem menos, o seu anseio de sempre: reunir-se e
fundir-se no seu amado, por tal forma que ambos passassem a ser uma só pessoa.
E qual a origem deste anseio? Precisamente, como vimos, o facto de que a nossa
primitiva natureza assim era e nós constituíamos então um todo. Ora, é essa
aspiração ao todo, essa busca incessante, que tem o nome de amor.
Se antes, como digo, éramos um só, agora, devido aos nossos erros,
estamos reduzidos pelo deus à dispersão, tal qual os Arcádios o foram pelos
Lacedemónios; e se não mostrarmos comedimento para com os deuses, é de recear
que sejamos de novo divididos e fiquemos por aí girando, exatamente como essas
figuras esculpidas nos baixos-relevos das estrelas serradas segundo a linha do
nariz, à maneira de simples contrassenhas… Eis, pois, o motivo por que cada
homem deve incitar plenamente os outros à veneração pelos deuses, se desejamos,
por um lado, escapar a esse perigo e, por outro, obter os benefícios a que a
que o amor nos conduz, no seu papel de guia e general. Que ninguém lhe
desobedeça (todo aquele que desobedece aos deuses aborrece…), pois só vivendo
em amizade e boa harmonia com os deuses lograremos descobrir o favorito que nos
é próximo – coisa que hoje em dia raros conseguem! E não se ponha Erixímaco, a
troçar das minhas palavras, com esses ares de entendido, a supor que é de
Ágaton e Pausânias que estou a falar: ate porque bem pode dar-se o caso de
pertencerem eles a esse número e possuírem ambos uma natureza viril… Mas não, o
que afirmo tem antes a ver coma humanidade inteira, homens e mulheres! A nossa
espécie só pode alcançar a felicidade quando cada um realizar em plenitude as
suas aspirações amorosas e encontrar o favorito que lhe é próprio, de modo a
restaurar a nossa primitiva natureza. E se este é o supremo bem,
necessariamente o que há de melhor no mundo atual é o que dele mais se aproxima,
quero dizer: acertar com um favorito talhado ao nosso feitio. E eis por que, ao
celebrar um deus, será de toda a justiça celebrarmos o Amor: não só é ele quem,
no presente, nos concede os maiores benefícios, como alimenta, quanto ao futuro,
as nossas esperanças mais caras. Se mostrarmos reverência para com os deuses, ele
nos dará a cura aos nossos males, restaurando a nossa primitiva natureza. E assim
seremos de facto felizes e bem-aventurados!»
Platão, O Banquete
(189c-193c). Tradução, introdução e notas de Maria Teresa Schiappa de Azevedo,
1991, Lisboa: Ed. 70.
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