A “justificação” da escravatura e o poder construído sobre a diferença


«Giovanni Antonio Cavazzi, um frade capuchinho que nas décadas de 1650 e de 1660 trabalhou como missionário em Angola e no Congo, escreveu um influente relato sobre a região, originalmente publicado em italiano em 1687. Num capítulo dedicado aos “defeitos naturais e morais dos habitantes”, Cavazzi proclamava estar prestes a descrever “coisas estranhas”, as quais “o barbarismo torna abomináveis” e que “a total diferença de costumes em relação aos nossos torna incríveis”. Segue-se a listagem desses defeitos: arrogância, despudor, preguiça, inaptidão, recusa de trabalhar, falta de iniciativa, incapacidade de inventar coisas novas, concupiscência, ausência do conceito de filhos legítimos, uso da procriação como forma de poder, autorização do roubo, malícia, mendicidade constante, prática comum de difamação, incapacidade de estudo, falta de amor pelos familiares, abandono de recém-nascidos, e a prática regular de vender pais, filhos e irmãos como escravos. Essa descrição era moderada pela referência aos hábitos cristãos da parte da população. Os habitantes urbanos eram criticados mais amiúde do que os do campo, enquanto os homens eram considerados muito mais preguiçosos do que as mulheres, que trabalhavam as terras. (…) Esta listagem de defeitos resumia os estereótipos cristãos em relação aos africanos negros, estereótipos que durariam até ao séc. XX. E que foram usados para justificar três séculos e meio de comércio esclavagista atlântico e a partilha de África na década de 1880.»

Bethencourt, F. (2015). Racismos. Das cruzadas ao século XX (pp. 126-7). Lisboa: Temas e Debates.

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