A tirania do mérito impede a curiosidade intelectual

 


«Quando penso na tirania que o mérito impõe aos jovens abastados e competitivos vêm-me à mente duas experiências da minha própria juventude.

A mania de selecionar e identificar talentos infiltrou-se na escola secundária que frequentei no final da década de 1960, em Pacific Palisades, na Califórnia. estas escolas eram tão fortemente monitorizadas em relação à identificação de talentos que, embora houvesse cerca de dois e trezentos alunos, dava por mim constantemente na companhia dos mesmos trinta ou quarenta pertencentes ao grupo com melhores resultados. O meu professore de Matemática do oitavo ano levou esta seleção ao extremo. Não me lembro exatamente se foi na aula de Álgebra ou de Geometria, mas lembro-me bem da disposição das carteiras. Três das seis filas eram aas chamadas "filas de honra", nas quais os estudantes eram colocados segundo a ordem precisa da sua média de notas. Isto significava que a atribuição dos lugares mudava a cada teste e a cada questionário. Para aumentar o dramatismo, o professor anunciava a nova disposição de lugares antes de entregar o exercício ou teste pontuado. (...)

Aos catorze anos eu pensava que era assim que as escolas funcionavam. Quanto melhor de te saías, mais alta era a tua classificação. Todos sabiam quem eram os melhores alunos de Matemática e quem tinha brilhado ou chumbado neste ou naquele teste. Embora na altura não me tivesse apercebido, esse foi o meu primeiro encontro com a meritocracia.

Quando chegámos ao décimo ano, a constante seleção e classificação começava a cobrara um preço alto. A maior parte dos alunos com as maiores classificações tornou-se obcecada com as notas, não só com as suas, mas também com as dos outros. Competíamos ferozmente uns com os outros, de tal forma que a nossa preocupação com as notas asfixiava a nossa curiosidade intelectual.

O meu professor de Biologia do décimo ano, o irónico professor Farnham, que usava laço e cuja sala de aula estava cheia de cobras, salamandras, peixes, ratos e outros animais fascinantes, estava preocupado com esta situação. Um dia, deu-nos um questionário sem aviso prévio. Pediu-nos para pegarmos numa tira de papel e aí escrevermos os números de 1 a 15 e que depois respondêssemos "verdadeiro" ou "falso". Quando os alunos se queixaram de que ele não nos tinha dado quaisquer perguntas para responder, ele disse-nos para pensarmos numa afirmação para cada número e indicarmos se era verdadeira ou falsa. Alguns alunos, angustiados, perguntaram se a nota deste teste  arbitrário contaria para a média final. "Sim, é claro", respondeu ele.

Na altura, achei aquilo uma piada divertida, ainda que excêntrica. Mas hoje compreendo que o professor Farnham estava a tentar, à sua maneira, fazer algo contra a tirania do mérito. Estava a tentar que suspendêssemos aquela mentalidade tão focada na seleção e na classificação para que pudéssemos admirar as salamandras.»

Sandel, M. J. (2022). A Tirania do Mérito. O que aconteceu ao bem comum (pp. 228-9). Lisboa: Ed. Presença.

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