A banalidade do mal ou a total ausência de pensamento


«Eichmann não era um Iago nem um Macbeth, e a última coisa que lhe passaria pela cabeça seria, como Ricardo III, "mostra-se um vilão". Exceção feita ao extraordinário empenho posto na sua ascensão pessoal, Eichmann carecia de motivos. E tal empenho não é, em si mesmo, um ato criminoso. Ele teria sido absolutamente incapaz de assassinar o seu superior para ficar com o lugar dela. Eichmann pura e simplesmente nunca teve consciência do que estava a fazer, para usar uma linguagem corrente. Foi precisamente esta falta de imaginação que lhe permitiu, durante meses a fio, estar sentado diante do judeu alemãoii que conduziu o interrogatório da polícia e abrir o seu coração àquele homem, explicando-lhe vezes sem conta as razões pelas quais não conseguira ser mais do que tenente-coronel das S.S. e que não tinha sido culpa sua o facto de não ter sido promovido. Em termos de princípio, pelo menos, sabia muito bem as razões pelas quais estava a ser julgado. Na sua última declaração ao tribunal, falou da "reavaliação dos valores defendidos pelo governo [nazi]". Eichmann não era estúpido. O que fez dele um dos maiores criminosos da sua época foi a total ausência de pensamento - o que não é, de forma alguma, a mesma coisa que estupidez. Por muito "banal", e até cómico, que isto seja e ainda que nem com toda a boa vontade do mundo se consiga descobrir em Eichmann uma profundidade diabólicaou demoníaca, a verdade é que também não podemos dizer que se trata de um lugar-comum. Não será certamente vulgar que um homem, na hora da sua morte, ao subir para o cadafalso, não consiga pensar em mais nada senão nas frases que, ao longo de toda a sua vida, ouviu nos funerais e que estas "palavras aladas" tenham força suficiente para o fazer esquecer a perspetiva da sua própria morte. Que um tal afastamento da realidade e uma tal ausência de pensamento possam causar danos ainda maiores do que todos os maus instintos que são talvez inerentes à natureza humana - eis a verdadeira lição a tirar do julgamento de Jerusalém.»

Arendt, H. (2024). Eichmann em Jerusalém. Uma reportagem sobre a banalidade do mal (pp.393-4). Lisboa: Relógio d'Água Editores.

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