Uma vetusta (séc.XVII) defesa da educação inclusiva
«4 - Não deve fazer-nos obstáculo o facto de vermos que alguns [alunos] são rudes e estúpidos por natureza, pois isso ainda mais recomenda e torna mais urgente esta universal cultura dos espíritos. Com efeito, quanto mais alguém é de natureza lenta ou rude, tanto mais tem necessidade de ser ajudado, para que, quanto possivel, se liberte da sua debilidade e da sua estupidez brutal. Não é possível encontrar um espírito tão infeliz, a que a cultura não possa trazer alguma melhoria. Certamente, da mesma maneira que um vaso esburacado, muitas vezes lavado, embora não conserve nenhuma gota de água, todavia, torna-se mais liso e mais limpo, assim também os débeis e os estúpidos, mesmo que nos estudos não façam nenhum progresso, tomam-se, todavia, mais brandos nos costumes, de modo a saberem obedecer às autoridades políticas e aos ministros da Igreja. Consta, de resto, pela experiência, que certos individuos, por natureza muito lentos, depois de terem seguido o curso dos estudos, passaram à frente de outros mais bem dotados. (...) Além disso, da mesma maneira que alguém, na infância, é belo e forte de corpo, e depois se toma enfermiço e emagrece, e um outro, ao contrário, em jovem, é de constituição doentia, e depois adquire força e cresce robusto, assim também se verifica com as inteligências, de tal maneira que algumas são precoces, mas depressa se esgotam e acabam por se tornar obtusas, e outras a princípio são rudes, mas depois tornam-se finas e muito penetrantes. Além disso, gostamos de ter nos pomares, não apenas árvores que produzem frutos precoces, mas também árvores que produzem frutos de meia estação, e frutos serôdios, porque cada coisa é boa no seu tempo (como diz algures o Eclesiástes) e, embora tarde, acaba por mostrar, em determinada altura, que não existia em vão. Porque é que, então, no jardim das letras, apenas queremos tolerar as inteligências de uma só espécie, ou seja, as precoces e ágeis? Ninguém, por conseguinte, seja excluído (...).
(...)
8 - Se alguém disser: onde iremos nós parar, se os
operários, os agricultores, os moços de fretes e finalmente
até as mulheres se entregarem aos estudos? Respondo:
acontecerá que, se esta educação universal da juventude
for devidamente continuada, a ninguém faltará, daí em
diante, matéria de bons pensamentos, de bons desejos,
de boas inspirações e também de boas obras. E todos
saberão para onde devem dirigir todos os actos e desejos
da vida, por que caminhos devem andar e de que modo
cada um há-de ocupar o seu lugar.
(...)
6.
Se nos observarmos a nós mesmos, depreendemos
igualmente que a todos, por igual, convém a instrução,
a moralidade e a piedade, quer observemos a essência
da nossa alma, quer a finalidade para que fomos criados
e postos no mundo. »
Coménio (2015/1626). Didática Magna IX, 4, 8; X, 6. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
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