A educação do presente e a educação do futuro utópico da IA


«O paradigma atual é a produção industrial. As matérias-primas são as crianças, entregues à porta da escola para que se dê um processamento coletivo, em lotes divididos por idades. São marteladas, moldadas e testadas ao longo de doze anos. Daí emergem cidadãos trabalhadores classificados e com qualidade controlada, a postos para trabalhar numa fábrica ou numa empresa de transportes. Algumas são ainda enviadas para uma outra central de processamento, para aí serem mais trabalhadas entre três e dez anos. As unidades que saiem dessas instalações mais avançadas estão prontas para assumir tarefas em gabinetes. Vão então desempenhar o trabalho que lhes estava destinado ao longo das décadas de vida ativa que lhes restarem.

Se olharmos para este processo, podemois ver que as principais funções desempenhadas pelo nosso sistema educativo são de três ordens.

Primeiramente, armazenamento e custódia. dado que os pais estão a exercer um trabalho remunerado fora de casa, não podem cuidar dos seus próprios filhos, por isso precisam de uma infraestrutura onde os deixar durante o dia.

Depois, disciplina e civilização. As crianças são selvagens e precisam de ser ensinadas a sentar-se quietas às suas mesas de trabalho e fazerem aquilo que lhes disserem. Isto requer muito tempo e muito treino. E também doutrinação.

Em terceiro lugar, classificar e certificar. Os empregadores precisam de conhecer a qualidade de cada unidade - consciência, conformidade e inteligência - para poderem decidir as tarefas a atribuir-lhe e, assim, estabelecerem quanto vale.

E a aprendizagem? Também pode acontecer, sobretudo como um efeito colateral das operações que forem realizadas nos passos anteriores. Qualquer aprendizagem que se faça é extremamente ineficaz. Pelo menos, as crianças mais espertas podem dominar um mesmo material uns 10% do tempo, mediante a utilização de recursos de aprendizagem online e ao estudarem ao seu próprio ritmo; mas, uma vez que isso não contribui para os objetivos centrais do sistema educativo, não há habitualmente nenhum interesse em incentivar esse caminho.
(...)
De qualquer maneira, se imaginarmos um mundo em que não seja preciso trabalhar, então haveria claramente uma oportunidade e uma necessidade para alterar o objetivo da educação. Em vez de se moldar crianças para que elas se tornem trabalhadores produtivos, deveríamos tentar educá-las para que se tornem seres humanos e pessoas com uma grande capacidade de aproveitar a vida.

Não sei ao certo como é que seria um tal programa educativo. Penso que talvez envolvesse o desenvolvimento da arte de conversar. E igualmente a apreciação da literatura, da arte, da música, do drama, do cinema, da natureza e da vida selvagem, das competições atléticas e por aí adiante. Poderiam ensinar-se técnicas de mindfulness e meditação. Passatempos, criatividade, brincadeiras, partidas astutas e jogos - tudo isto poderia ser inventado e praticado. Conhecimento. Cultivo dos prazeres do palato.

(É certo que, se estas disciplinas me tivessem sido ensinadas pelos professores que tive, ter-me-ia afastado de todas estas coisas para sempre, muito provavelmente. Mas dado que estamos a imaginar uma situação irreal, com abundância material universal, etc., podemos muito bem imaginar que, de alguma forma, a boa instrução seria disponibilizada a todos.)

E que mais? Talvez a prática do humor, da astúcia e da observação atenta. A celebração da amizade. Artes de vários géneros, ofícios, encorajamento dos prazeres simples. Como é óbvio, seriam enraizados os hábitos saudáveis. Também consigo imaginar o desenvolvimento da exploração espiritual e da sensibilização. Penso que o foco atual na disciplina não seria totalmente eliminado, mas transformar-se-ia: porque julgo que o foco, a atenção, a concentração, o autocontrolo, a persistência e a capacidade de encontrar prazer na prática deliberada e no esforço mental e físico continuariam a ser importantes - e, talvez, mais importantes do que hoje, porque haveria menos oportunidades para que esses hábitos se desenvolvessem devido a exigências e dificuldades externas. O cultivo da curiosidade - aqui, posso estar eventualmente a projetar as minhas próprias tendências, mas acho que a paixão pelo saber poderia melhorar enormemente uma vida de ócio. E também o cultivo das virtudes e o interesse no autoaperfeiçoamento moral. A abertura do intelecto à ciência, à história e à filosofia, para revelar o contexto mais vasto de padrões e de significados dentro dos quais as nossas vidas se inserem...»

Bostrom, N. (2025). Utopia Profunda. A vida e o seu sentido num mundo perfeito (pp.121-3). Alfragide: D. Quixote.

Comentários

Mensagens populares